O filme Ainda Estou Aqui (2024), dirigido por Walter Salles, oferece um retrato íntimo e profundo das vivências emocionais e psíquicas de Eunice Paiva (Fernanda Torres), uma mulher que sofreu no corpo e na mente a brutalidade da Ditadura Militar Brasileira. A narrativa, baseada no livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice Paiva, explora não apenas a luta política, mas também os mecanismos psicológicos que ela utilizou para sobreviver e proteger sua família. Este artigo busca aprofundar a análise psicológica de Eunice Paiva, destacando os mecanismos de defesa que foram empregados, como a negação e a sublimação, para lidar com o trauma.
A Atmosfera Linear do Filme e a Construção da Personalidade de Eunice
Walter Salles opta por uma narrativa linear e intimista, que reflete a personalidade de Eunice Paiva: uma mulher que equilibra fragilidade e força em meio ao caos. A linearidade do filme não apenas acompanha a cronologia dos eventos, mas também espelha a maneira como Eunice enfrenta a vida após o desaparecimento de seu marido, Rubens Paiva. A atmosfera inicial, marcada por cenas cotidianas e familiares, é gradualmente substituída por um tom sombrio e melancólico, que reflete a deterioração emocional da protagonista, sem muitas variações na temperatura do filme.
A escolha de Salles por uma narrativa linear permite ao espectador vivenciar a transformação de Eunice de uma dona de casa dedicada em uma ativista incansável. A câmera acompanha seus pequenos gestos, olhares e silêncios, revelando uma mulher que não se permite viver a dor, buscando a proteção dos filhos. A linearidade também reforça a ideia de que, para Eunice, a vida não é uma sucessão de eventos dramáticos, mas uma série de momentos cotidianos que precisam ser enfrentados com resiliência e determinação.

A Negação como Proteção Psíquica
A psicanálise nos ensina que os mecanismos de defesa são estratégias inconscientes utilizadas pelo ego para proteger o psiquismo de ameaças externas e internas. No caso de Eunice Paiva, a negação emerge como um mecanismo central para lidar com o trauma do desaparecimento de Rubens. A negação não é apenas uma recusa em aceitar a realidade, mas uma forma de preservar a sanidade mental em um contexto de extrema adversidade.
Ao longo do filme, vemos manifestações ocasionais dessa negação. Por exemplo, mesmo após a prisão de Rubens, Eunice continua a agir como se ele pudesse voltar a qualquer momento. Ela mantém a casa organizada, prepara refeições e cuida dos filhos, como se a vida pudesse retornar ao normal. Essa negação não é um sinal de fraqueza, mas uma estratégia inconsciente para proteger a si mesma e aos filhos da devastação emocional que a aceitação prematura da perda poderia causar.
A negação também se manifesta na maneira como Eunice evita discutir o desaparecimento de Rubens com os filhos. Em vez de confrontar a realidade, o ego distorce a realidade, optando por criar um ambiente de normalidade, onde, neste caso, a dor é silenciada. Esse mecanismo inconsciente do ego protege o psiquismo de um princípio de realidade traumática, ainda que em determinados momentos a realidade salte à consciência provocando dor pela perda em menor intensidade. São nesses momentos de confrontação com o real, que Eunice traça estratégias para que os filhos cresçam sem serem completamente consumidos por um possível trauma, ao mesmo tempo em que ela preserva sua própria estabilidade emocional: falar abertamente sobre o possível não retorno do marido seria viver a angústia da perda e encarar o sofrimento angustiante e iminente. Dessa maneira, a consciência traça essas estratégias para fugir do que é mais insuportável ao psiquismo.

Da Negação para a Transformação das Pulsões
A partir do momento em que a realidade vai saltando à consiência a partir das baixas das resistências, fica estabelecido um processo consciente do acontecimento traumático. Tendo consciência da realidade que causa muito sofrimento, fica perceptível o quanto que a instância do ego de Eunice utiliza de novas estratégias a fim de evitar o sofrimento. Daí por diante, ao invés de recalcar, o ego sublima as pulsões que estariam destinada a algum objeto para encontrar satisfação.
Freud argumentava que as pulsões (ou instintos) são forças internas que buscam satisfação, mas que nem sempre podem ser expressas diretamente devido às restrições sociais e morais. A sublimação (outro mecanismo de defesa do ego) permite que essas pulsões sejam canalizadas para atividades que não apenas evitam conflitos internos, mas também contribuem para a cultura e a sociedade. No caso de Eunice Paiva, a raiva pelo desaparecimento de Rubens poderiam ser entendidos como forças pulsionais que, em vez de serem reprimidas ou expressas de forma destrutiva, foram redirecionadas.
A formação em Direito, por exemplo, pode ser vista como uma forma de sublimação, na qual Eunice transforma sua dor em uma busca por justiça e reparação. O Direito, como campo de atuação, oferece um canal estruturado e socialmente valorizado para lidar com questões de injustiça e violência, permitindo que ela expresse sua indignação de maneira produtiva e transformadora.
Também a luta por justiça social e a tentativa de preservação da memória do marido, especialmente em um contexto de repressão política como a Ditadura Militar, podem ser entendidas como uma forma de sublimação. Freud sugeria que as pulsões agressivas, quando não podem ser expressas diretamente, podem ser redirecionadas para causas sociais ou políticas. No caso de Eunice, a raiva e a indignação diante da violência do regime podem ter sido sublimadas em sua atuação como defensora dos direitos humanos e indígenas, sem que ela se desse conta de que apenas estaria protegendo-se a si mesma. No fim, essa luta não apenas canalizou suas emoções de forma construtiva, mas também contribui para a transformação social, alinhando-se ao conceito freudiano de que a sublimação é um dos pilares da civilização.
Da Sublimação para uma Outra Forma de Proteção
No ano de 1996, após o arquivamento das memórias do marido ocorridas no período militar e a consequente conquista do atestado de óbito com registro de causa mortis como "desaparecido em 1971", Eunice sente que a sua luta havia terminado. No entanto, no aspecto psicológico, é possível pensar que o desaparecimento do marido, o acontecimento traumático, ainda estava bem vivo na psiqué. Isso porque no processo de envelhecimento Eunice é acometida por um transtorno neurodegenerativo conhecido como doença de Alzheimer. O processo de demência causa deterioração da memória e do pensamento. Analisando todas as circunstâncias passadas, é possivel sugerir que o psiquismo de Eunice continuou a se proteger de um sofrimento angustiante mesmo na velhice.
As manifestações das vivências traumáticas podem facilmente encontrar no corpo um representante para o sofrimento. Isso é o que a psicologia e a neurociência moderna chamam de processos psicossomáticos.

Ao analisar a vida de Eunice Paiva, é possível perceber como os mecanismos de defesa do ego evoluíram e se integraram ao longo do tempo. A negação, inicialmente usada como proteção, deu lugar à sublimação, que permitiu que Eunice transformasse pulsões não bem aceitas socialmente em ação. No entanto, com o passar dos anos, e com a impossibilidade motora de transformar, sublimar, trabalhar e produzir, ao perceber que a dor é tamanha o psiquismo de Eunice viu-se impossibilitado de sustentar esses mecanismos de defesa, levando a uma manifestação psicossomática do stress causado (uma outra defesa). Dessa maneira, com a consequente perda da memória, Eunice encontrou uma nova forma de se proteger da dor: não lembrar.
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