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Educação de filhos da geração alpha

Foi a partir do século XX que passamos a acompanhar uma mudança nas formas como os indivíduos se relacionam entre si. O decorrer deste século foi marcado por mudanças estruturais na cultura global, sobretudo naquilo que tangencia as questões de ordem sexual, da vazão à libido e os desdobramentos concernentes à sexualidade não mais reprimida. No século anterior havia ainda resquícios da repressão sexual imposta pela cultura dominante[1] alicerçada no cristianismo, no patriarcalismo e nas células familiares. Essas células familiares eram compostas por um pai autoritário e provedor e, uma mãe cujas atribuições eram voltadas exclusivamente a assuntos domésticos, gerenciamento do lar, prestação continuada na satisfação sexual do marido, manutenção da hierarquia social familiar cimentada num ambiente punitivo e retificador.


Uma mãe cuidando de quatro crianças e um pai ocupado com carpintaria.
Família vitoriana. Óleo de David Henry Friston.

Deve-se à psicanálise, em parte, a mudança da cultura na sociedade,  pois foi a partir das contribuições de Freud, que a humanidade passou a viver do lado de cá desse divisor de águas. Com a noção de inconsciente, repressão, recalque e sexualidade infantil, passamos a distensionar certas idéias repressoras – na metade do século XX –,  onde a cultura se vê na obrigação de abandonar a ideia de pecado com relação a sexualidade vinculada ao matrimônio, abrindo-se ao compromisso com a pulsão. Nessa esteira garantidora de liberdade sexual, nasce também uma preocupação em gerar descendentes, “rebentos”. No nosso ponto de vista, o problema não se encontra na sexualidade dos indivíduos em si, mas na construção de uma cultura que se estabelece em oposição às exigências de uma cultura pregressa. Se a premissa de que cada geração produz os seus próprios sintomas é verdadeira, temos, enquanto sociedade, um desafio enorme adiante, visto que as repressões já não operam na mesma intensidade que séculos anteriores ao nosso. Trata-se de uma sociedade com exigências distintas, não mais do controle sobre os desejos (correlação de forças desejo-proibição), mas sobretudo da busca do objeto faltante - o santo graal para dar vida, vigor e sentido. Vem do próprio Freud a postulação de que a pulsão é fronteiriça, seja, na fronteira entre o anímico (energia vital) e o somático, na confluência entre a natureza instintual e a cultura. Nesse latifúndio de conflito, forma-se a sexualidade ligada à gênese de uma pulsão. Ora, se a cultura é palco para o nascimento da pulsão, o querer e a própria sexuação, na hiância do nascimento do desejo, entre o ser e o não-ser, o sujeito está vulnerável à construção de um Eu não mais a mercê do desejo de uma geração predecessora. Daí também a angústia do futuro. Fora a singularidade de cada sujeito, forma-se no agora a angústia relativa ao comportamento de um outro sujeito que passa a se relacionar num novo contexto. Sem as amarrações de uma cultura que ditava o patriarcalismo, pavimentada sobre relacionamentos com o objetivo único de procriação, a subjetividade das gerações flutua em constante mudança, a cada 15 anos, diferente da subjetividade que moveu os indivíduos até meados do século XX, onde a repressão governava o controle sobre a libido, sendo causa dos sintomas de histeria em mulheres. Caiu-se, em certa medida, as repressões sobre a libido, mas com isso também caiu-se os vínculos estruturais da família tradicional que se colocava como eixo de geração em geração. Neste ponto tentei explicar que a psicanálise operou uma mudança no comportamento humano, uma mudança social, visto que a produção de um novo constructo social deu-se em função de três grandes descobertas ontológicas da humanidade: o heliocentrismo (Copérnico), onde retira o homem do centro do universo; a teoria da evolução (Darwin), onde postula novo conceito sobre a origem das espécies; e a Psicanálise (Freud), onde mostra que o homem é governado pelo inconsciente. Nisto, uma cultura suplantando outra, deve-se também à Psicanálise, que por sua vez precisa estar preparada às demandas da cultura. É sobre esse contexto de rápida alteração de costumes que emerge a angústia da criação de filhos. 


Nessa era pós-moderna, a pergunta “estamos criando bem os filhos desta geração?” recebe lentes de aumento. Sociólogos e demógrafos descrevem a geração atual como Geração Alpha. Trata-se de crianças nascidas a partir do ano de 2010. Essas crianças são nativas digitais, pois já participam desde os primeiros dias de vida em um contexto técnico-científico-informacional, como discriminou Milton Santos. Na maternidade são filmadas e as suas imagens são transmitidas em tempo real a qualquer lugar do mundo. Já nos primeiros anos conseguem fazer movimento de pinça num aparelho smartphone e aos quatro anos a sua principal fonte de informação não é mais um adulto, mas uma inteligência artificial criada por uma bigtech norte-americana. Esta é, sem dúvida, uma geração muito diferente das predecessoras, visto que a todo tempo cria-se um ambiente de conexão numa rede informacional de transferência de dados, imagens, códigos, hábitos e a vida cotidiana. A ideia de metaverso chega a ser assustadora com a proposta de uma realidade virtual, onde os usuários criam um avatar para viver uma outra realidade e trocar experiências do cotidiano em um ambiente diferente daquele que estão inseridos. Ou seja, vive-se duas vidas ao mesmo tempo. Nesse contexto de liberdade sexual e virtualidade urge a necessidade de um ambiente suficientemente bom, garantidor de amor próprio, empatia e segurança emocional.



No filme “Precisamos falar sobre o Kevin” vemos características de pais inseguros quanto a criação do primogênito Kevin. A mãe, Eva, parece não desejar a gestação da criança, o que já demonstra uma situação perturbadora, visto que é sentido pelo bebê em formação o desejar da mãe; Após o nascimento, Eva passa por um puerpério angustiante e difícil, na fase de “dependência absoluta” do filho. Embora a depressão causasse sintomas de tristeza profunda, Eva se dispunha a criá-lo e amá-lo, na medida que conseguia. Mas isso não bastava para uma criança que já crescia com uma falha na constituição do ego. Kevin se desenvolve a partir de uma estrutura perversa, fazendo crueldades direcionadas à mãe, sempre no sentido de atingi-la. Mais tarde, já adolescente, Kevin masturba-se sem apresentar incômodo ou vergonha com o flagrante da mãe. As cenas de crueldade e perversão se repetem ao longo do filme e o desfecho se dá com um massacre na Escola dirigido por Kevin, antecipado com o assassinato do pai e da irmã mais nova.


É possível pensar muitos pontos de vista a partir do filme, mas nos deteremos na junção de apenas três. Por primeiro, a questão de um ambiente suficientemente bom. Pegaremos emprestado de Winnicott a tese de que “privação gera delinquência”. Kevin era privado desse ambiente suficientemente bom. Por mais que a mãe e o pais se esforçassem, não era visto, no tempo em que estavam presentes, uma atenção voltada aos filhos. Além disso, há também a perspectiva do que a criança introjeta quando lhe é dada alguma atenção, sobre o que ela percebe e sente, mesmo quando lhe é oferecido algum afeto.  Se uma criança sente-se privada de algo, o reconhecimento de não ter é deslocado para a revolta. Passa assim a exigir, agredir e tentar arrancar do outro o que lhe falta. Numa segunda perspectiva, percebe-se uma ausência do Nome do Pai, da imposição da lei e dos limites. O filme retrata a vida de um sujeito pedindo limites de forma inconsciente a todo o momento. Kevin chega a sugerir à mãe que a atitude de rudeza em que ela atira o filho no chão, vindo a quebrar o braço do menino, seja o momento mais sensato que ele vivenciou com ela. É percebido também que o pai de Kevin está na maior parte do tempo ausente, e mesmo quando está por perto não consegue observar o comportamento sedutor e perverso do filho. E por último, podemos analisar esse tipo de comportamento como uma falta de contorno ao sujeito. Quando o ambiente não é suficientemente bom, uma medida extremamente necessária é o contorno que se promove ao indivíduo, na tentativa de trazer algum sentido para a existência daquele sujeito. A literatura, a cultura, a filosofia, a arte, a música e a religião, são formas de contorno que protegem o sujeito de escapar do contexto social que ele está inserido, possibilitando que o mesmo enxergue o outro como participante da construção do próprio Eu. Os valores adquiridos passam a ser direcionados também para o outro que recebe um lugar de reconhecimento na vida do sujeito.


Retornemos então à pergunta do 3º parágrafo: Estamos criando bem os filhos desta geração? A resposta é não. O momento crucial em que vivemos urge a necessidade de uma estrutura que ofereça uma rede de apoio e uma  formação continuada às novas configurações familiares no tocante à criação dos filhos desta geração. As novas configurações familiares não têm o suporte necessário na formação subjetiva do sujeito, e uma pequena falha por parte da mãe na sustentação do Eu pode provocar uma angústia na subjetividade do dependente, evoluindo para uma organização patológica da personalidade. Os filhos desta geração são habilidosos em muitos aspectos, ao passo que estão sujeitos, não raro, a uma constituição de um “falso self”, um ego que se constrói a partir de um ambiente faltoso, sem um amparo materno adequado, onde a criança interpreta como ameaça à sua existência. Daí por diante a criança cresce e se desenvolve tentando se proteger de ataques, tornando-se adultos frágeis em muitos aspectos, sem noção da realidade que os cerca.



 

[1] A cultura dominante da era  vitoriana da Europa Ocidental, no final do século XIX – embora passasse por significativas transformações na economia com o advento da Revolução Industrial, a partir de 1750 —, ainda era produto do caldo construído na fase histórica anterior dominada pela Igreja Católica e seus costumes, conhecida como Idade Medieval.





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