Charlotte Collet
Jessica Choukroun-Schenowitz
Mohammed Ham
[…] será necessário para este corpo os excessos iminentes de nossa cirurgia para que se torne evidente para o olhar comum que só o dispomos para fazê-lo ser seu próprio fragmento, para que seja dissociado de seu prazer.
(Jacques Lacan, 1967/2001, p. 351)
Nossos encontros clínicos com pacientes obesos em busca de cirurgia bariátrica nos mergulharam em uma clínica do corpo que nos questionou sobre a predominância do psiquismo na obesidade. Essa indagação se tornou mais precisa quando nos deparamos com o fato de que nossos pacientes não podiam dizer nada sobre seus corpos-sintomas, exceto elaborá-los a partir de uma queixa sobre suas limitações físicas e reivindicar a cirurgia bariátrica como terapêutica.
As técnicas cirúrgicas bariátricas consistem em modular e/ou amputar órgãos saudáveis do sistema digestivo, a fim de produzir efeitos restritivos e metabólicos induzindo a perda de peso. Nossa intervenção neste serviço especializado nos permitiu observar que as mudanças relacionadas a essa operação não eram sem consequências, gerando sintomas tanto orgânicos quanto psíquicos.
No aspecto psíquico, nossos pacientes operados — neuróticos e psicóticos — enfrentaram sintomas, pesadelos, fantasias e delírios que têm em comum trazer à tona a dimensão fragmentada do corpo. A peculiaridade deste achado clínico é a reação psíquica transestrutural, que nos permite sustentar a hipótese de um comprometimento da dimensão psíquica do corpo quando o sujeito é submetido à cirurgia bariátrica, principalmente relacionado às suas repercussões orgânico-psíquicas, confirmando uma base psicopatológica da obesidade.
Na neurose, identificamos que as fantasias ligadas à fragmentação surgem quando a perda de peso implica mudanças físicas. Nossa hipótese é que elas estariam relacionadas a uma desintegração da imago, essa conjuntura entre a imagem e o eu ocorrida no estágio do espelho, que está na origem da dimensão unificada do corpo — contra sua fragmentação original. Como resultado, o sujeito enfrentaria uma regressão tópica a essa fase. Na psicose, a descompensação da dimensão fragmentada do corpo ocorre pouco depois da intervenção, supomos que seja relativa ao defeito estrutural de simbolização, originando uma experiência do ato cirúrgico no modo da intrusão e das mudanças internas no modo da perseguição.
Este trabalho propõe desenvolver nossas hipóteses clínicas a partir das três dimensões do corpo — Real, Imaginário e Simbólico — em seu encontro com a cirurgia bariátrica.
A primeira parte aborda a construção psíquica do corpo, a partir do conceito lacaniano de "estágio do espelho" (Lacan, 1966, pp. 93-100); a segunda sobre o impacto psíquico da cirurgia bariátrica, destacado pela análise de um caso clínico de neurose e psicose.
A transição do corpo fragmentado para o corpo unificado: uma operação psíquica
O corpo, como concebido pela psicanálise, é co-dependente da linguagem, mais especificamente, é um efeito da linguagem, sendo primariamente falado pelo Outro. Ele carrega as marcas representativas de seus desejos, de seus cuidados, ... que fizeram sentido para o sujeito em formação, até se inscreverem como significantes na origem da estruturação da relação com seu corpo. Numa clínica do corpo, este último é lido como um pergaminho com inscrições hieroglíficas a traduzir. São essas marcas linguísticas que o habitam e que têm predominância sobre sua tridimensionalidade, esse corpo como criatura imbricada nos registros do Real(1), do Imaginário(2) e do Simbólico(3).
O corpo Real corresponde ao irrepresentável da vida, são seus órgãos, sua carne, seus ossos, o que o constitui e impulsiona sua dinâmica. Durante uma intervenção cirúrgica, é precisamente essa dimensão que é afetada. Na realidade psíquica do ser falante, essa dimensão é velada pelo imaginário, que tem uma preponderância sobre a representação corporal imaginada. O corpo imaginário é aquele que se constrói a partir do "estádio do espelho" e está relacionado à identificação do sujeito com uma imagem especular autenticada pelo Outro como representativa, mas que depende, previamente, do simbólico. Como tal, o acesso a esse estágio dá conta das primeiras etapas da metáfora paterna e faz do corpo simbólico o lugar dos significantes que marcaram o sujeito com uma verdade sobre sua relação com o Outro e seu desejo.
A ligação do sujeito com seu corpo ocorre no estádio do espelho, que representa o momento em que o infans(4), entre 6 e 18 meses, acessa a simbolização da forma de seu corpo — sua gestalt — por meio da identificação com sua imagem no espelho. Inicialmente, sua neotenia [isto é, membros atrofiados, em formação] o coloca numa incapacidade de se representar como outro do Outro, ele é ao mesmo tempo totalidade e fragmentado, especialmente pela diversidade das marcas deixadas em seu corpo. Na origem, o bebê é uma "coleção incoerente de desejos — esse é o verdadeiro significado da expressão corpo fragmentado — e a primeira síntese do ego é essencialmente alter ego, ela é alienada" (Lacan, 1955-56/1981, p. 50).
O processo de passagem do corpo fragmentado para a unidade — do infinito para o finito — a partir da simbolização da forma do corpo, é estabelecido inicialmente pela identificação do Outro que se posiciona como terceiro na relação entre o infans e sua imagem: "esta imagem, és tu". Essa nomeação como autenticação triunfante diante do vazio da imagem permite ao pré-sujeito investir o especular infiltrado da nomeação e do desejo do Outro [eu sou isso que ele disse que eu sou]. A imagem associada ao desejo se tornará seu ideal do eu, e a forma à qual ele se identificará, seu eu ideal. Concomitantemente, desse intruso especular se retirará um esboço de seu eu resultante desse "presente do amor da Mãe Outra" (Sauret, 2008, p. 61) que fará com que "o sujeito se ame na medida do amor que recebeu" (Ibid.).
[...] o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno vai da insuficiência à antecipação — e que, para o sujeito, preso à ilusão da identificação espacial, fabrica fantasias que sucedem de uma imagem fragmentada do corpo a uma forma que chamaremos de ortopédica de sua totalidade — e à armadura finalmente assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. (Lacan, 1966, p. 97)
Esse estágio representa a etapa que permitirá ao infans acessar uma forma ortopédica de sua totalidade, um esboço de seu eu que corresponde à passagem do corpo fragmentado para a unidade. Lembremos que, para Freud, o eu "não é apenas um ser de superfície, mas ele próprio a projeção de uma superfície [...]. O eu consciente é, antes de tudo, um eu corporal" (Freud, 1923/1968, p. 238), aquele construído no e pelo espelho. Na construção psíquica do corpo, este estágio é a fase de uma divisão pela identificação à imago, cuja função é "estabelecer uma relação do organismo com sua realidade, — ou, como se diz, do Innenwelt ao Umwelt" (Lacan, 1966, p. 93), do mundo interno para o ambiente. A imago do corpo é essa envoltura que o contém, sua dimensão imaginária à qual o sujeito vai se alienar.
A projeção na imagem de um esboço pré-comunicacional do eu induz a "permanência mental do Eu" (Ibid.). Assim, a imagem se torna imago, sua condensação com o eu inscreve o sujeito na ligação social, incluindo o pequeno outro como parceiro. Essa interação com o espelho é sustentada pela interação com a alteridade: o campo do outro se abre simultaneamente à descoberta do espelho. Como resultado, Lacan determina seu encerramento pela inauguração da "dialética que liga o eu a situações socialmente elaboradas" (Ibid.), a assunção da imago como identidade alienante, essa armadura assumida que protege o sujeito de seu encontro com o Outro.
O estádio do espelho trabalha na elaboração de uma unidade corpórea fictícia que proporciona ao sujeito a impressão de “ter do corpo”. Pois inicialmente, o bebê está do lado do “ser do corpo” -- é um organismo sujeito a excitações fisiológicas e ao Outro. Como tal, o sujeito não é corpo, é a inscrição psíquica da ilusão de sua posse, por sua unificação, que o coloca do lado do “ter do corpo”. O ser é primeiro porque o ter implica uma ação, uma interação com o exterior que passa pela interação com a imagem no espelho.
O "ter do corpo" que decorre de sua unificação, representativa da conexão entre o orgânico e o psíquico, reflete os primeiros efeitos da metáfora paterna. Como resultado, essa etapa é precisamente o que enfrenta obstáculos na psicose, e a sequência visualizada da criança encontrando sua imagem no espelho poderia ser representada da seguinte forma: a criança que descobre sua imagem no espelho não se vira para olhar o Outro fora do espelho que viria autenticá-lo, permitindo-lhe se reconhecer como sujeito. Como desenvolvido anteriormente, a função desse Outro é fundamental em seu encontro com a imagem; ele é o terceiro organizador que permite a identificação pela nomeação, resultando na condensação da imagem e do eu — o "imaje" — e na abertura à alteridade. Portanto, essa falta de verificação simbólica diante do que ele vê mergulha a criança numa imagem vazia de sentido, não dialética, carecendo do filtro do desejo do Outro para domesticá-lo.
Lacan nos esclarece que "se a relação estabelecida com a imagem especular é tal que o sujeito está muito cativo da imagem para que esse movimento (virar a cabeça para o Outro, comunicando-se com a imagem especular) seja possível, é porque a relação dual pura o despojou de sua relação com o grande Outro" (Lacan, 1962-63/2004, p. 142). Assim, a síntese da unidade corporal através do especular, produzida pela alienação ao "imaje" e ao Outro, é frustrada. Na psicose, o que é tomado como corpo é apenas um transtorno, o corpo fragmentado por uma coleção incoerente de desejos insignificantes.
A imagem no espelho à qual o sujeito psicótico está fixado não está presa à alienação imaginária, pois não está vinculada aos significantes, mas é, na verdade, um espectador de um mundo significante insignificante, um mero significado de um Outro todo-poderoso que deixa seus desejos incoerentes. Portanto, na psicose, o corpo, construído sem suporte imaginário e simbólico, pode se revelar à consciência em sua dimensão Real e incluir elementos de perseguição. Isso é evidente no caso de nossa paciente Clémence, com cerca de vinte anos, quando a encontramos durante sua internação em um serviço de medicina para anorexia e alcoolismo. Durante a consulta, ela relata perseguições orgânicas que ela associa à origem de sua anorexia, "quando engulo comida, sinto-a descer pelo meu sistema digestivo", o que a leva a ingerir apenas "líquidos". Clémence adiciona que as sensações que ela experimenta são uma "intrusão" de objetos estranhos — a comida — e, principalmente, "objetos perigosos" para seu organismo. Suas palavras refletem notavelmente esse corpo na psicose que não é substancializado pelos significantes, ou seja, que não está velado pelo imaginário, mas é realmente Real, é seu "sistema digestivo" que ela sente. A comida também não é significada, são objetos que a colocam em perigo. O destino desse sintoma anoréxico na psicose nos permite entender os efeitos da falta de operação da eleição imaginária do corpo. Este último está sem ancoragem imaginária e, enquanto Real, persegue nossa paciente.
Esse desenvolvimento nos leva de volta à função do imaginário, que é ser uma construção fantasiosa que permite lançar um véu sobre o corpo Real. Portanto, o impacto deste último pela técnica bariátrica deveria produzir efeitos em sua dimensão imaginária.
Os efeitos psíquicos da cirurgia bariátrica
O termo bariátrico se desdobra a partir da etimologia grega em "baros" para peso e "iatros" para médico. A cirurgia bariátrica, comumente chamada de cirurgia da obesidade, compreende técnicas que amputam ou desviam os órgãos do sistema digestivo para alcançar a perda de peso. Nos últimos cinquenta anos, diferentes técnicas surgiram. Em 2021, as mais realizadas na França são a gastrectomia longitudinal, conhecida como sleeve, e a derivação gástrica com alça de Roux em Y, chamada de by-pass.
A sleeve é uma cirurgia dita restritiva, cuja técnica consiste em cortar e remover dois terços do órgão estomacal do organismo (5). O paciente operado com uma sleeve é obrigado a se alimentar em pequena quantidade; é a restrição alimentar que precipita a perda de peso. O by-pass, traduzido para o francês como "curto-circuito gástrico", é uma cirurgia mista que combina efeitos restritivos, semelhantes à sleeve, e má absorção. Com essa técnica, o órgão estomacal é seccionado (6), mas sua diferença em relação à sleeve é que não é removido do organismo, mas deixado flutuando. Sua parte reduzida é conectada ao intestino delgado, que é, por sua vez, contornado. A peculiaridade do by-pass é induzir uma síndrome de malabsorção [má absorção] que precipita sintomas digestivos acentuando a perda de peso.
Essas técnicas cirúrgicas têm em comum condicionar uma restrição alimentar e efeitos metabólicos que impulsionam, a curto prazo, uma perda de peso significativa, podendo chegar a 20 quilos em dois meses. Como resultado, a transformação física que essa perda envolve é muito rápida, enquanto a obesidade muitas vezes está presente há muitos anos.
Na neurose, presumimos que a rapidez dessas transformações estaria na origem de uma distorção entre a imagem do espelho e o "imaje", vetor de sua desintegração. Ao mesmo tempo, o contorno do sintoma voltado para a oralidade, que, como todo sintoma, tem uma função para o sujeito, principalmente a de conter a angústia, produziria sua ressurgência, precipitando uma reificação do corpo. A combinação desses dois fatores provocaria fantasias e pesadelos de fragmentação corporal, nos quais a unidade imaginária do corpo parece descontruída.
Na psicose, destacamos o impasse do estádio do espelho, o sujeito não está alienado ao "imaje" mas cativo de uma imagem vazia, desprovida de substâncias desejantes e significativas, é a supremacia da dimensão Real do corpo. Como tal, sustentamos que seu impacto pela cirurgia bariátrica estaria na origem dos delírios relacionados à fragmentação corporal, considerando a castração orgânica [sic] realizada por essas técnicas.
A partir do caso clínico de Line e Toni, propomos testar a hipótese de que as repercussões organicopsíquicas relacionadas à cirurgia bariátrica condicionariam, na neurose, uma disjunção entre a imagem e o eu que precede a transição do corpo unificado para o corpo fragmentado; na psicose, uma descompensação do corpo originalmente fragmentado.
Line: do corpo-casco ao corpo fragmentado
Quando conhecemos Line, ela tinha 31 anos. De tamanho pequeno e pesando quase 160 quilos, ela está, do ponto de vista médico, em um estágio de obesidade grave. Ela considerou uma segunda cirurgia bariátrica, após o “fracasso” da anterior, que lhe permitiu perder 110 quilos.
Line relaciona sua obesidade a um acontecimento traumático na infância: o abuso sexual perpetrado por sua prima quando ela tinha 8 anos. O seu ganho de peso começou pouco depois, ela coloca-o como a origem da construção de um corpo “casco” que lhe permite proteger-se dos homens, deixá-los “assustados”, ou mesmo, “rivalizar com eles”. Line reivindica seu corpo obeso, que o usa como “força”, mas o esconde sob roupas largas, mantendo uma aparência masculina. Muito claramente, “eu faço o papel de homem”, nos dirá ela, e nas suas relações amorosas estará orientada para homens que nos descreve com falta de virilidade.
Para Line, a função do seu corpo obeso é protetora, é o seu casco, a sua força que o protege de qualquer encontro com o Outro sexo. Porém, em determinados períodos de sua vida, dietas drásticas fizeram com que ela perdesse muito peso. Ela discute alternâncias entre anorexia, que pode se estender por vários meses, e hiperfagia, precipitando perda/ganho de peso que teria distendido sua pele, o que a leva a nos dizer: “Não tenho corpo”. Notemos que esta afirmação está ancorada num paradoxo, no que diz respeito à afirmação anterior relativa à função do seu corpo-casco.
Vimos Line na consulta um mês após a cirurgia bariátrica. Esta última correu bem e Line já começa a sentir os efeitos da sua transformação. Ela nos conta sobre uma mudança recente, sua afirmação para além do corpo, mais precisamente, através das “palavras”. É agora nelas que ela extrai a sua força. Esta observação vem de uma briga recente com um homem que a levou a se proteger com palavras, e não mais com o corpo. Desde que percebeu que suas palavras podem protegê-la, ou até mesmo repará-la, Line vem questionando a relação que tem tido com seu corpo nos últimos anos, “por que estraguei tanto?”.
A perda de peso, que acompanha as mudanças físicas, é rápida em Line. Ela aparece na consulta seguinte irreconhecível, com roupas justas, salto agulha, principalmente maquiada, nos dizendo que acabou de chegar do cabeleireiro. Line quer nos mostrar sua nova imagem, ela também quer ser vista. Desde a sua metamorfose, ela se sente “uma mulher por direito próprio”.
Porém, Line nos conta que sua hiperfeminilidade visa esconder seu corpo que parece “pedaços de carne”. Como ela nos conta, suas roupas justas permitem que elas apertem os “pedaços de pele morta”, esse corpo que lhe escapa, principalmente porque ela não consegue mais controlar a perda de peso e enfrenta mudanças físicas significativas.
Line nos conta sobre um acontecimento recente que virou seu dia a dia de cabeça para baixo. Um encontro físico com um homem reativou a memória da cena do seu estupro que tem assombrado seus pensamentos desde então. Ela não pode mais ser “tocada”, qualquer proximidade corporal é insuportável para ela, porque “quando alguém me toca, acende por dentro. Sinto que minha pele está me destruindo lentamente…”
Ao perder os quilos, Line teria perdido o casco: “Não me sinto mais protegida”. No seu corpo nu revelaram-se os vestígios do acontecimento traumático, cuja reminiscência durante a reaproximação com este homem nos parece explicar o ressurgimento da ansiedade, corolário dos seus pensamentos obsessivos voltados para a cena da sua violação.
Line não aguenta mais ser abordada, nem ver seu corpo. Ela removeu todos os espelhos de sua casa. Para ela, “ninguém consegue entender” o que ela está vivenciando. Se ela continua enganando quem está ao seu redor com sua hiperfeminilidade, ela não se engana, “o que você vê não é o que está por baixo da minha roupa”, ela sabe que é possível esconder o pior por trás da aparência.
“Meu corpo não sou mais eu”. As suas palavras parecem-nos invocar esta desconexão entre a imagem e o [eu], na origem da desintegração da imaje, na medida em que o seu corpo já não se identifica com o eu. Line enfrentaria, psiquicamente, uma regressão tópica ao estádio do espelho, passando da unificação corporal para a fragmentação. A alteração da dimensão imaginária do seu corpo pode ser percebida em suas palavras que dizem respeito a um corpo feito de pedaços de pele morta, de carne (representante da carne), é o predomínio da sua dimensão Real.
O ressurgimento da ansiedade durante a reativação do trauma sexual produziu em Line um encontro com um corpo estranho. “Sinto que estou sendo estuprada todos os dias por um corpo que não é meu.” A cena do seu estupro que assombra seus pensamentos há várias semanas será transformada... Line nos conta que agora é vítima de imagens obsessivas nas quais se imagina “cortando com uma faca meus pedaços de pele pendurados”. Suas imagens diurnas migram para seus pesadelos onde ela se vê “arrancando a pele das coxas com uma faca”.
Line, que enfrenta a ansiedade sem o casco, se depara com a fragmentação de seu corpo. Este último, monopoliza todas as consultas, tudo gira em torno “desse monstro” que a “enoja”. Ela manifesta o seu pesar pela intervenção: “Não pensei que me encontraria neste estado… No espelho já não consigo ver nada. Eu sei que meu corpo está machucado. A sua roupa justa que lhe permite “esconder a pele morta”, contém também o seu corpo ferido que se decompõe.
Observamos que, se antes da cirurgia bariátrica ela estava se destruindo por dentro ao comer em excesso, já que não consegue mais comer e está enfrentando uma perda de peso significativa, ela imagina se destruir por fora ao dilacerar a pele, “Tornei-me um pedaço de pele viva”. Line, que não tinha corpo mas brincava com a sua imagem – da masculinidade à hiperfeminilidade – enfrentaria uma desintegração da imagem e do eu. As formulações: “no espelho já não vejo nada”, ou “já não reconheço o meu corpo”, parecem-nos referir-se à desintegração da imagem na origem do seu sentimento de êtrangeté(7) ligado à ‘angústia’.
Mesmo na experiência do espelho, pode chegar um momento em que a imagem que acreditamos ter ali muda. Se esta imagem especular que temos diante de nós, que é a nossa estatura, o nosso rosto, o nosso par de olhos, deixa emergir a dimensão do nosso próprio olhar, o valor da imagem começa a mudar - especialmente se existe em um momento em que esse olhar que aparece no espelho passa a olhar apenas para nós. Initium, terá, o alvorecer de um sentimento de estranheza que é a porta aberta à ansiedade. (Lacan, 1962--63/2004, p. 104; grifo nosso)
A partir de agora, Line não é mais essa mulher “de pleno direito”, como pôde afirmar no início do emagrecimento, mas “meia mulher” que esconde “um monstro” sob a roupa. Somos tentados a pensar que este monstro equivale ao seu encontro com o Real do seu corpo que se revela nas suas fantasias e pesadelos, a partir da sua imagem fragmentada feita de “pedaços de carne” e “pele pendurada”. Mas isso seria esquecer que na cronologia das suas representações psíquicas, essas imagens que se tornaram obsessivas eram secundárias, que substituíram as da cena do seu estupro. Line havia vinculado seu ganho de peso a esse acontecimento, e esse desenvolvimento tenderia a confirmar a função de seu corpo obeso, que seria o de ser uma barreira contra o trauma, tendo em vista sua revivificação durante a perda de seu corpo. Consequentemente, todos esses elementos nos levam à função do sintoma em Line, com base psicopatológica da obesidade, cuja declaração seria um mecanismo de defesa, uma sobrevivência psicológica.
Toni: da anorexia à autofagia
Encontramos Toni dois meses após sua cirurgia bariátrica. Ele tem 41 anos e explica que seu ganho de peso começou há 4 anos, após um acidente de esqui. Embora tenha poucas sequelas físicas, dores difusas e intensas o levaram a encerrar seu emprego. Ele relata que, desde o acidente, "tudo piorou" em sua vida, e ele toma um analgésico e um antidepressivo.
Foi pouco depois da cirurgia bariátrica que Toni começou a se sentir mal: "Eu estava perdido, não sabia mais o que fazer". Ele compartilha suas preocupações sobre seu estado, pois desde então sente que está "perdendo a cabeça" e percebe que tem "lacunas de memória". Ao mesmo tempo, suas dores corporais se intensificaram: "Elas destroem minha saúde e meu corpo, eu não as entendo".
Toni começa a se tornar estranho ao que sente, até ter a sensação "de viver em um corpo estranho" que ele "não reconhece mais". Ele nos oferece uma representação alterada de seu organismo, observando que "mesmo que eu não tenha mais estômago, tenho uma bola no estômago". A estrutura psíquica de Toni transparece nesta frase, que reflete uma falta de metáfora que pode ser encontrada na psicose, além de nos permitir esclarecer o pseudo-fantasma associado ao ato cirúrgico: para Toni, esse ato o privou do estômago, mas não de sua angústia; sua bola no estômago está presente.
Ao longo das consultas, notamos que Toni apresenta sintomas de anorexia. Desde que ele não sente mais fome(8), não consegue se alimentar adequadamente, o que o leva a se comparar a "uma máquina sem emoção" que precisa ser alimentada "com combustível", ou seja, comida. Ele explica que suas dificuldades alimentares se agravaram quando começou a reintegrar a "comida em pedaços"(9), enfrentando bloqueios e sensações orgânicas que o atormentam: "quando como, sinto meus intestinos se contraindo e cortando por dentro". Suas palavras nos remetem, por um lado, às de nossa paciente Line citada anteriormente, que tolera apenas a ingestão de líquidos, pois os alimentos a fazem sentir seu tubo digestivo, e, por outro lado, a essa estranheza do corpo que leva Toni a sensações de cortes internos, que nos parecem equivalentes à castração orgânica realizada pela cirurgia bariátrica. Esse paralelo se baseia na falta de metáfora destacada por nosso paciente, indicando que seu organismo perpetua o corte, sinal de a-simbolização.
Em Toni, a estranheza de seu corpo está relacionada à ressurgência de sua dimensão Real, que o fragmenta e o atormenta. Nossa hipótese se torna mais clara quando ele nos diz que não consegue mais "engolir os pedaços" e que agora se alimenta com seus próprios "pedaços de carne", os "pedaços de pele" dentro de suas bochechas, que ele arranca e engole. Toni chega ao ponto de nos mostrar sua nova forma de (se) devorar, de se destruir, apoiando sua nova prática com a constatação: "eu me devoro por dentro".
Essa prática autofágica nos remete, literalmente, à dimensão fragmentada do corpo que supomos descompensada pela cirurgia bariátrica. Se, para Line, os fantasmas de fragmentação corporal ocorrem após a perda de peso e se concentram no corte de seus "pedaços de pele que pendem", ou seja, o exterior de seu corpo como reflexo da imagem, para Toni, é pouco depois da intervenção que seu interior começa a lhe fornecer sensações que ele não consegue apreender. Seus intestinos que se contraem e cortam representam a carne da qual agora se alimenta, o reverso Real da pele fragmentada de Line. Isso nos permite estabelecer o domínio da dimensão Real do corpo em Toni, sem consistência imaginária, destacando essa impossibilidade de dialética em relação ao corpo em ação na psicose.
Conclusão
A fragmentação corporal após a cirurgia bariátrica é um fenômeno psicológico transestrutural que nos parece estar associado ao ressurgimento da ansiedade em pacientes que enfrentam mudanças orgânicas, psicológicas e físicas radicais. Embora este artigo se concentre no impacto da cirurgia bariátrica no corpo real e imaginário, é oportuno levar em consideração dois elementos importantes que participaram da leitura de nossos casos clínicos, bem como da construção de nossa hipótese: o âmbito funcional do sintoma-corpo na obesidade, que, como foi o caso da nossa paciente Line, pode atuar como proteção tanto física quanto psicológica, inclusive, da abolição do sintoma baseado na oralidade(10). Consequentemente, a cirurgia bariátrica impacta a função do corpo, mas também os sintomas do sujeito obeso, o que poderia explicar as inúmeras descompensações psicológicas pós-operatórias.
Voltando à especificidade desse fenômeno psicológico transestrutural, notamos uma distinção entre neurose e psicose, que diz respeito à dimensão do corpo impactado pela cirurgia bariátrica. Em Line, nossa paciente neurótica, conseguimos identificar a reativação de um trauma original – a cena de seu estupro – após uma significativa perda de peso, significando, ao mesmo tempo, a perda de seu casco corporal. Essa cena foi registrada como uma imagem assustadora, depois foi substituída por cenas em que ela se imaginava cortando sua pele pendurada, fazendo pedaços de seu corpo. Assim, do lado da neurose, seria a dimensão imaginária do corpo que seria afetada, aquela que concentra as fantasias, a imaje como imagem e o eu — alienação do ego —, ou seja, o exterior: essa pele fragmentada.
Na psicose, falta ao sujeito o filtro da imaginação para sobrepor uma fantasia ao seu corpo e ancorar a imagem. Consequentemente, a técnica bariátrica impactaria diretamente a sua dimensão Real, o organismo, ou seja, o interior do corpo: esta carne fragmentada. Em nosso paciente Toni, seu delírio ocorre logo após a operação, e envolve sensações de cortes internos ao comer, precipitando a anorexia e, em seguida, a ingestão de sua carne como novo alimento. Sua prática autofágica nos remete literalmente aos pedaços de pele como pedaços do corpo Real, representativos do corpo primitivo decomposto por não ser unificado pela linguagem.
A partir da distinção estabelecida entre as repercussões psíquicas na neurose – exterior, imaje, imaginário – e na psicose – interior, organismo, Real – podemos sustentar que o imaginário serve de fato como uma barreira contra o Real. É assim que na neurose, embora a cirurgia intervenha no Real do corpo, colateralmente, é a sua dimensão imaginária que é impactada, e presumimos que a sua desintegração esteja na origem da regressão tópica, com fantasias de fragmentação que remeteriam a este corpo antes do estádio do espelho, originalmente fragmentado. Na psicose o sujeito não possui o filtro da imaginação para compor durante sua vida com a dimensão Real do seu corpo, seu ataque pela técnica reavivaria sua fragmentação.
Esta observação parece-nos apoiar uma segunda hipótese, a da base psicopatológica da obesidade. Acontece que esta conjectura foi reforçada pela nossa experiência clínica num departamento de cancro, onde conhecemos pacientes com cancro digestivo, a maioria dos quais tinha acabado de ser operada a um tumor no cólon ou no estômago. Observamos que as colectomias(11) ou gastrectomias(12) realizadas nesses pacientes não geraram as repercussões psicológicas que encontramos em nossos pacientes obesos que utilizaram técnica cirúrgica semelhante para perder peso, que não causaram descompensação psicológica ligada à fragmentação corporal, nem transtornos alimentares do tipo anoréxico. Consequentemente, parece-nos oportuno considerar a importância da dimensão psicopatológica na obesidade, particularmente nas propostas terapêuticas e no desenvolvimento de percursos médicos.
*Traduzido por Heron Rosa com auxílio de ferramentas digitais de tradução . Título original: Morcellement du corps et chirurgie bariatrique. De l’organique au corporel dans leur rapport aux logiques structrurelles. Artigo científico retirado da Rev. latinoam. psicopatol. fundam. 25 (2) • Apr-Jun 2022. In: https://doi.org/10.1590/1415-4714.2022v25n2p270.
1 O Real é um conceito lacaniano que representa o impossível, algo que não pode ser capturado pelas palavras e escapa ao simbólico. Nesse sentido, o Real se opõe à realidade. Para evitar qualquer confusão, neste texto, o Real lacaniano será escrito com um R maiúsculo.
2 O Imaginário diz respeito, acima de tudo, à apreensão pelo sujeito de sua imagem no espelho. Lacan a associa ao estágio do espelho, que é o momento em que o pré-sujeito se apropria de sua imagem como representação de si mesmo. É a transição da imagem para a ima-je, acessível ao Outro e a assunção ao simbólico.
3 O Simbólico está correlacionado à linguagem; é um sistema de representação que estabelece uma ordem simbólica na realidade psíquica do falante.
4 Nós adotamos o termo "infans" do psicanalista Sàndor Ferenczi para designar "aquele que não fala". Ele deriva de "in farer", a etimologia latina da palavra "enfant" (criança).
5 Sua capacidade pós-operatória varia entre 60 mililitros e 250 mililitros.
6 Após um bypass, a capacidade do órgão estomacal varia entre 100 mililitros e 250 mililitros.
7 Esse neologismo, que condensa o ser ao estranho, nos permite enfatizar o corpo originário que situamos do lado do ser, aquele que precede o estágio do espelho.
8 A amputação de uma parte do órgão estomacal provoca uma redução de um hormônio orexigênico, a grelina, resultando na supressão das sensações de fome.
9 Durante o primeiro mês pós-operatório, a alimentação é principalmente líquida e/ou triturada. Os alimentos sólidos são reintegrados gradualmente.
10 Em uma maioria de nossos pacientes, observamos a predominância de dois sintomas: a compulsão alimentar e a fome sem fim. Após a cirurgia bariátrica, a ingestão de alimentos é drasticamente reduzida devido à restrição orgânica. Assim, os pacientes não conseguem satisfazer suas compulsões alimentares, compulsões cuja excessividade parece estar relacionada a uma modalidade de gozo.
11 Uma colectomia corresponde à remoção de uma parte ou de todo o cólon.
12 Uma gastrectomia é a remoção de uma parte ou da totalidade do estômago. Na cirurgia bariátrica, ela corresponde à sleeve, cuja terminologia em francês é gastrectomia longitudinal.
Referências
Buchwald, H., & Varco. R. L. (1978). Metabolic Surgery Grune & Stratton.
Freud, S. (1968). Le moi et le ça. In Essais de psychanalyse Payot, “Petite bibliothèque”. (Travail original publieé en 1923).
Lacan, J. (1981). Le séminaire. Livre III. Les psychoses Le Seuil, “Le champ freudien”. (Travail original publieé en 1955-56).
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Lacan, J. (1966). Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je, telle qu’elle nous est révélée dans l’expérience psychanalytique. In Écrits (pp. 93-100). Le Seuil, “Le champ freudien”.
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