Uma das contribuições mais importantes e fundantes de Freud para a psicanálise é o conceito de Complexo de Édipo. Resumidamente, trata-se de um processo inconsciente das crianças, mais especificamente na fase fálica (genital), onde a criança passa a amar um objeto dentre os pais, rejeitando a outro e mais tarde se identificando com um ou com outro; a saída do complexo é a definição da sexuação e a escolha de objeto. Há algumas diferenças fenomenológicas no processo entre meninos e meninas. Este artigo propõe esmiuçar o processo encontrado em meninas, cujo complexo é chamado de Édipo Feminino para diferenciar do processo ocorrido em meninos. Mais adiante, detalhar-se-á o caso de Anna Ó, primeira paciente de Freud, e a sua relação com o Complexo de Édipo.
Para termos uma idéia de como se manifesta esse complexo, onde toda criança atravessa, sem exceção, é necessário adentrarmos no mundo da sexualidade infantil. Tentaremos fazer uma junção dos achados de Freud com as teorias de Lacan, demonstrando de uma vez só o processo de constituição da sexualidade infantil nas meninas como premissa para compreender a subjetividade do feminino.
Freud postulou a sexualidade infantil como perverso-polimorfa (Costa, 2010). Perversa, porque, além de auto-erótica, dista de uma sexualidade voltada exclusivamente ao genital, na forma de prazer e procriação. Polimorfa, porque além de alteração entre as partes do corpo para alcançar gratificação às pulsões, é também sem definição de escolha objetal (bissexual). É na fase fálica do desenvolvimento infantil, que acontece o processo do Édipo Feminino. É necessário entender alguns postulados que levou Freud, em 1929, a fechar a teoria do complexo de Édipo. Primeiro temos a universalização do pênis e o complexo de castração como conceitos fundamentais para estabelecer todo o processo. o Falo (inexistente e imaginário), e não a anatomia do pênis real, é o elemento que irá permear a fantasia e o psiquismo da menina, como oposição a um ser castrado – tanto em Freud como em Lacan. Quando a menina entra na fase fálica, ela se percebe castrada, pois o clitóris, que é a zona erógena dominante nessa fase, embora substituto ao pênis, é anatomicamente menor que o pênis do menino. Nessa fase a vagina ainda não é descoberta como zona erógena. A sexualidade clitoridiana é a única sexualidade erógena nesse período, pois é a zona de descarga de excitação sexual, visto que possui uma força compensadora da excitabilidade libidinal reprimida na vulva e na vagina (Fenichel, 2005). Então a menina tem como primeiro objeto de amor a mãe. A mãe desempenha o papel de objeto para onde a menina irá direcionar os impulsos de sexualidade ativa. Uma fusão não dual, mas uma tríade “mãe-menina-falo”. A menina liga-se à mãe, assim como o menino, em seu desejo primário, pois indiferente os papéis, filho ou filha são substitutos do falo que a mãe continua buscando numa resolução do seu próprio Édipo: “Ser ou não ser o objeto de desejo da mãe” (LACAN apud COSTA, 2010). Assim, fica estipulado que a menina é o próprio falo da mãe. A mãe aqui exerce um papel quase central na constituição sexual da menina, visto que a criança é um substituto para a falta do falo que a mãe permanentemente busca. A menina não sofre a angústia de castração, como o menino, pois já é castrada. Assim, ela percebe que a mãe não tem o falo a oferecê-la, para manter uma sexualidade ativa e sofre decepção por ser castrada, supondo que o falo esteja com o pai. Nesse contexto, a menina troca o objeto materno pelo paterno. O afeto que prevalece para a troca de objeto é a inveja ao pênis, inveja ao falo, na falta de simbologia para a sexualidade da mulher. No entanto, a menina, em condições normais cisgenérica, além de trocar de objeto ela troca de uma posição ativa para uma posição passiva, por haver uma passagem da excitabilidade para o canal vaginal, desejando, assim, ser mulher e dar um filho ao pai, até sofrer o interdito, recalcamento da excitabilidade clitoridiana e sexualidade ativa - ou seja, os impulsos libidinais precisam ser trocados. É na relação pré-edípica com a mãe, nos efeitos do complexo de castração, que a menina organiza a sua sexualidade.
Lacan ainda acrescenta à teoria de Freud uma nova perspectiva para compreender a organização sexual no Édipo. Ele estabelece na fase pré-edípica uma passagem que a criança faz no processo de introjeção da própria imagem, chamando de “estádio do espelho”. Nos primeiros anos, através da percepção da auto-imagem, a criança passa a entender quem se é, abandonando a ideia do Outro, tendo noção da sua completude “corpo-mente”, de um Eu (Self) unificado e não mais fragmentado. Essa passagem é importante pois é a saída do sujeito de uma posição psicótica. Se a auto-imagem não é compreendida e introjetada, a criança fixa-se na imagem que o Outro tem de si, apresentando patologia estrutural no processo de desenvolvimento. Ao chegar na fase fálica, Lacan propõe dois conjuntos triangulares que se formam: um primeiro mãe-criança-falo (como já abordamos no parágrafo anterior) e um segundo, mãe-pai-criança. (Costa, 2010). A mãe então é a grande representante de um desejo (DM). A mãe revive o seu próprio Édipo colocando a menina como substituta para o falo desejante, na falta de uma significação para a mulher. Essa simbiose mãe-menina ocorre porque a menina fica submetida ao Falo imaginário da mãe. Mas é a partir do Nome-do-Pai (a lei metafórica), com a entrada do pai (ou da ideia de pai) na primeira tríade, é que se pode substituir um significante por outro significante.
Lacan afirma que podemos resolver os impasses do Édipo postulando a intervenção do pai como “a substituição de um significante por outro significante”, em outras palavras, substituindo o Desejo da Mãe pelo Nome-do-Pai. Com o advento da metáfora paterna, o Desejo da Mãe é barrado e, como resultado dessa operação, temos a inclusão do Nomedo-Pai, significante da Lei no Outro e da significação fálica, testemunha da inscrição da castração. (COSTA, 2010).
Nesse segundo tempo do Édipo, a intervenção do pai barra o desejo da mãe, impedindo que se perpetue a significação da menina enquanto falo como objeto de gozo da mãe, além de intervir também na menina com a proibição do incesto, colocando-se agora como um falo rival. No terceiro tempo lógico, após os interditos, o pai deixa de ser rival para ser um suposto detentor de um dom (um falo). O complexo de castração entra em jogo e começa a declinar o complexo de Édipo. Doravante, “a menina encontra uma possível identificação com a mãe sob a forma de não ter, mas de saber onde deve ir buscá-lo. Assim, é o Nome-do-Pai que permite [...] à mulher a possibilidade de se situar como objeto de desejo do homem.” (COSTA, 2010).
Em Estudos sobre a Histeria (1893-1895), Freud em co-autoria com Joseph Breuer, descrevem detalhadamente o caso de uma paciente chamada Anna Ó, acometida por uma doença de alteração psíquica, que hoje compreendemos como Neurose Histérica de Conversão, manifestada por
uma psicose singular, parafasia, estrabismo convergente, graves perturbações da visão, paralisias com contratura (paralisia completa no membro superior direito e nos dois membros inferiores, parcial no membro superior esquerdo), paresia da musculatura da nuca. Redução gradual da contratura nos membros do lado direito. (FREUD, 2016).
Houveram ainda outras sintomas manifestados convertidos em surdez, falta de apetite, insônia, perda da língua mãe, repulsa por água, etc. Resumidamente, a paciente de Breuer, e mais tarde de Freud, contraiu essa doença através de uma descarga emocional, abalada com o adoecimento de seu amado pai. A paciente era uma mulher dócil e bondosa. No entanto, a partir das afecções patológicas, houveram alterações comportamentais que a tornaram agressiva e impaciente. Por meio do método catártico aprendido com Charcot, visto que a psicanálise não havia sido desenvolvida, foi possível estabelecer nexos causais entre o início de determinado sintoma e o trauma emocional vivenciado que o desencadeou.
No relato de Freud sobre a paciente não é possível identificar nenhuma menção que se possa afirmar que houve uma fixação de Anna em uma fase psicossexual da infância, ou até mesmo que a passagem pelo Édipo se deu de maneira anômala. Pelo contrário, até os 21 anos, Anna gozava de perfeita saúde psíquico-emocional; era inteligente, sagaz e completamente insugestionável (Freud, 2016). No entanto, já nos primeiros apontamentos da descrição do caso, Freud faz uma referência importante para situarmos a condição sexual da jovem:
O elemento sexual era espantosamente pouco desenvolvido; a doente, cuja vida tornou-se transparente para mim como raramente a de um ser humano para outro, jamais tivera um amor e em todas as numerosas alucinações de sua doença nunca emergiu esse elemento da vida psíquica. (FREUD, 2016)
[..] e também,
[...] o pai da paciente, que ela amava apaixonadamente, contraiu um abscesso peripleurítico que não cedeu e ao qual ele sucumbiu em abril de 1881. Durante os primeiros meses dessa doença, Anna dedicou-se a cuidar do enfermo com toda a energia de seu ser, e ninguém se admirou muito de que, pouco a pouco, ela se abatesse profundamente. (FREUD, 2016, grifo nosso).
Eis aqui, ao nosso entender, o elemento principal que coloca o caso da Anna Ó em nossa tentativa de demonstrar o complexo de Édipo como fundante na construção da vida psíquica do sujeito. Se para Anna Ó o amor não tinha sido despertado por alguém, até os 21 anos, fazendo com que a sexualidade de Anna fosse pouco desenvolvida, nota-se que é para o pai o direcionamento de sua libido. Tornava-se então avassalador a ideia de perder o seu amor primeiro, ou seja, observa-se dessa maneira uma passagem não fechada do Édipo. Dessa maneira, a vida psíquica de Anna se organiza em torno de uma histeria de conversão, visto que se o direcionamento de sua libido fosse outro objeto que não o pai, a sua fantasia[1] de morte do pai estaria sendo concretizada. Percebe-se assim que o interdito ao incesto sofre uma resistência com pouca ou nenhuma introjeção. A lei que instauraria a proibição de uma relação incestuosa em Anna Ó não tem seus efeitos imediatos na fase fálica, fazendo com que ela se coloque no lugar da mãe como objeto de desejo do pai. As descobertas de Freud sobre como a doença se vincula às vicissitudes vividas em torno do pai, dão-nos material suficiente para estaelecer essa relação amorosa que é própria da fase edipiana.
Por fim, percebemos que o caso de Anna Ó não está sozinho no universo das alterações psíquicas entre mulheres. Comumente se observa na prática clínica a expressão do complexo de Édipo em muitos aspectos, quais sejam: rivalidade ou apego excessivo com a mãe ou com pai; ciúme ou sentimento de exclusão; interesse pelo seu próprio órgão sexual em qualquer fase da vida pós-edípica; comportamento infantilizado; dificuldade de estabelecer relações amorosas saudáveis; fetiches sexuais; impulsos anais e sádicos reprimidos[2]; angústia relativa à sexuação; “fuga da feminilidade” (forte inveja do pênis)[3];
[1] “Cultivava sistematicamente o devaneio, que denominava seu “teatro particular”” (FREUD, 2016, p. 30).
[2] FENICHEL, 2005, p. 73
[3] _________, 2005, p. 73
REFERÊNCIAS
COSTA, Terezinha. Édipo. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2010.
FENICHEL, Otto. Teoria psicanalítica das neuroses. São Paulo: Editora Atheneu, 2005.
FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria [1893-1895]. In. Obras completas, volume 2 [tradução Laura Barreto]. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
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